Suponha
um mundo sem riscos financeiros, onde os bancos sejam altruístas, e
emprestassem dinheiro a seus clientes à mesma taxa que investiriam – neste caso
a taxa referencial de juros dos títulos federais, divulgada pelo Banco Central,
a Selic.
Dessa
forma, um cliente poderia pegar dinheiro emprestado em Setembro de 2017, a uma
taxa equivalente a 0,663% ao mês, ou 8,25% ao ano. Assim, uma pessoa poderia
pegar R$1.000,00 no banco hoje, e quitar sua dívida no mês que vem por
R$1.006,63, pagando R$6,63 de juros ao banco.
Entretanto...
...o
mercado não é isento de riscos. No mercado de crédito, o risco mais comum é o de não-pagamento do empréstimo (ou de suas
parcelas), chamado oficialmente de inadimplência,
e informalmente, de calote. O banco
precisa se proteger desse risco, pois senão irá perder dinheiro (lembre-se que
até este momento ele não ganhou nada, está emprestando seu dinheiro ao seu
cliente à mesma taxa que emprestaria ao governo federal, ao comprar um título
público). O que ele poderia fazer para se proteger desse risco? Uma forma seria
contratar um seguro – repassaria o risco de inadimplência a um terceiro,
pagando um prêmio por isso, e receberia o valor segurado, caso o cliente não
fizesse o pagamento do empréstimo (ou de uma de suas parcelas). Isso poderia
ser complicado de realizar, pois precisaria encontrar alguém que quisesse
assumir o risco, e pudesse dar garantia de pagamento – além de custar dinheiro,
por que ninguém iria assumir esse risco de graça, o que nos leva a intuir que
isso teria um custo, e que esse custo talvez não seja muito fácil de
precificar.
Uma
forma mais fácil (e discutivelmente, mais justa) seria repassar esse custo de
volta aos clientes: se um cliente não pagar, os demais se comprometem a pagar
(compulsoriamente) a dívida desse cliente. Como o efeito da inadimplência é
estatístico (é uma parcela pequena dos clientes que deixarão de pagar seus
empréstimos), ele sofre menor flutuação em amostras maiores, sendo mais estável
e previsível.
Vamos
entender como funciona a inadimplência?
Imagine
que o banco empreste R$1.000 para 100 clientes, a uma taxa de 10% ao ano. Ao
final desse ano, cada cliente deve devolver R$1.100 ao banco. Entretanto, um
dos clientes não conseguiu pagar seu empréstimo, e o banco teria um prejuízo de
R$1.100. Se os outros 99 clientes fossem compensar o banco pelo prejuízo, cada
um deveria pagar R$11,11 a mais, fazendo com que a taxa de empréstimo passasse
de 10% para 11,1% - e até aqui, o banco não teve lucro, só repassou o risco de
inadimplência ao cliente!
Esta
situação pode ocorrer de outra forma, com o mesmo efeito: 22 clientes só
puderam pagar R$1.050 de volta ao banco, perfazendo o mesmo prejuízo anterior,
e tendo o mesmo efeito na taxa efetiva de juros.
Ainda
assim, este cálculo tem um problema de concepção: a inadimplência não é para
sempre. Os clientes inadimplentes, eventualmente, terão condições de pagar seus
empréstimos (ou ao menos uma parte deles), e não tiveram suas dívidas perdoadas,
portanto fazer os demais pagarem imediatamente (e antecipadamente) por isso não
é lá muito justo ...ainda mais por que os bancos, na vida real, têm lucro.
Eu
resumi abaixo qual seria a taxa mínima que a instituição financeira teria de
cobrar de seus clientes para não ter prejuízo com a inadimplência:
Taxa básica de juros
|
||||||||
Inadimplência
|
5%
|
6%
|
7%
|
8%
|
9%
|
10%
|
11%
|
12%
|
1%
|
6,06%
|
7,07%
|
8,08%
|
9,09%
|
10,10%
|
11,11%
|
12,12%
|
13,13%
|
2%
|
7,14%
|
8,16%
|
9,18%
|
10,20%
|
11,22%
|
12,24%
|
13,27%
|
14,29%
|
3%
|
8,25%
|
9,28%
|
10,31%
|
11,34%
|
12,37%
|
13,40%
|
14,43%
|
15,46%
|
4%
|
9,38%
|
10,42%
|
11,46%
|
12,50%
|
13,54%
|
14,58%
|
15,63%
|
16,67%
|
5%
|
10,53%
|
11,58%
|
12,63%
|
13,68%
|
14,74%
|
15,79%
|
16,84%
|
17,89%
|
6%
|
11,70%
|
12,77%
|
13,83%
|
14,89%
|
15,96%
|
17,02%
|
18,09%
|
19,15%
|
7%
|
12,90%
|
13,98%
|
15,05%
|
16,13%
|
17,20%
|
18,28%
|
19,35%
|
20,43%
|
8%
|
14,13%
|
15,22%
|
16,30%
|
17,39%
|
18,48%
|
19,57%
|
20,65%
|
21,74%
|
9%
|
15,38%
|
16,48%
|
17,58%
|
18,68%
|
19,78%
|
20,88%
|
21,98%
|
23,08%
|
10%
|
16,67%
|
17,78%
|
18,89%
|
20,00%
|
21,11%
|
22,22%
|
23,33%
|
24,44%
|
Figura
1: Taxa que a instituição financeira teria que cobrar, sem lucro, para
compensar a inadimplência no empréstimo
Uma
característica perversa fica evidente, ao analisar o aumento percentual na taxa
básica de juros, para cada percentual de inadimplência: quanto menor a taxa básica de juros, maior a influência da
inadimplência na taxa do empréstimo, como mostra a tabela abaixo.
Taxa básica
de juros
|
||||||||
Inadimplência
|
5%
|
6%
|
7%
|
8%
|
9%
|
10%
|
11%
|
12%
|
1%
|
21,21%
|
17,85%
|
15,44%
|
13,64%
|
12,23%
|
11,11%
|
10,19%
|
9,43%
|
2%
|
42,86%
|
36,05%
|
31,20%
|
27,55%
|
24,72%
|
22,45%
|
20,59%
|
19,05%
|
3%
|
64,95%
|
54,64%
|
47,28%
|
41,75%
|
37,46%
|
34,02%
|
31,21%
|
28,87%
|
4%
|
87,50%
|
73,61%
|
63,69%
|
56,25%
|
50,46%
|
45,83%
|
42,05%
|
38,89%
|
5%
|
110,53%
|
92,98%
|
80,45%
|
71,05%
|
63,74%
|
57,89%
|
53,11%
|
49,12%
|
6%
|
134,04%
|
112,77%
|
97,57%
|
86,17%
|
77,30%
|
70,21%
|
64,41%
|
59,57%
|
7%
|
158,06%
|
132,97%
|
115,05%
|
101,61%
|
91,16%
|
82,80%
|
75,95%
|
70,25%
|
8%
|
182,61%
|
153,62%
|
132,92%
|
117,39%
|
105,31%
|
95,65%
|
87,75%
|
81,16%
|
9%
|
207,69%
|
174,73%
|
151,18%
|
133,52%
|
119,78%
|
108,79%
|
99,80%
|
92,31%
|
10%
|
233,33%
|
196,30%
|
169,84%
|
150,00%
|
134,57%
|
122,22%
|
112,12%
|
103,70%
|
Figura
2: Aumento percentual na taxa de juros do empréstimo, para compensar a
inadimplência
...e
já que uma imagem vale por mil palavras, vamos ilustrar essa tabela com um
gráfico:
Figura 3: Aumento percentual na taxa de juros do empréstimo, para compensar a inadimplência
Muito
bem, já deu para perceber que a inadimplência é uma grande vilã no aumento das
taxas de juros para o consumidor ...mas qual a dimensão dessa inadimplência? Segundo
esta notícia da Exame, a inadimplência do Banco do Brasil está acima de 6% no curto prazo (acima
de 15 dias, mas abaixo de 90 dias, com maior chance de serem recuperados), e 4%
no longo prazo (atrasos superiores a 90 dias, com baixa chance de serem
recuperados) – as provisões para devedores duvidosos (PDD) do Banco do Brasil
totalizaram R$ 27,5 bilhões. Os outros grandes bancos tem números
semelhantes.
Dessa
forma, novamente considerando que o banco fosse bonzinho, e não tivesse lucro
algum com esse tipo de operação, procuraríamos dentre os valores apresentados na
tabela da Figura 1, e com um pouco de interpolação, encontraríamos um valor
próximo de 15% a.a., para a atual taxa Selic de 8,25% a.a. – um aumento
superior a 80% em relação à taxa livre de risco. Se fôssemos considerar o lucro
que o banco colocaria para realizar essa operação, esta taxa ultrapassaria 50%
ao ano, sem dúvidas – e aqui estamos considerando devedores minimamente
qualificados. Abordaremos mais sobre isso, a seguir.
Quando
uma instituição financeira vai conceder crédito a um cliente, já sabendo que há
o risco de não receber o valor de volta, ela deve se certificar que ele tem
condições de pagar as parcelas nas datas estabelecidas. Em geral, ela irá pedir
algum tipo de garantia, que mostrará a capacidade de pagamento do cliente. Pode
ser um bem (casa, carro, etc), uma consignação de rendimentos (desconto em
folha de pagamento), ou um fiador (que por sua vez terá de dar uma garantia própria).
Quanto maior o valor da garantia, em relação ao valor financiado, menor o risco
– pode dar trabalho e demorar (e custar bastante, em termos de gastos legais),
mas o valor emprestado poderá ser recuperado.
Outro
aspecto da inadimplência se refere ao prazo de atraso: atrasos curtos (menos de
15 dias) são comuns (muitas vezes são causados por distração no controle de
datas de pagamento e de fluxo de caixa do cliente), e podem causar problemas de
gestão para a instituição credora, mas geralmente não apresentam um risco
significativo, e seu custo é coberto pela aplicação de uma multa sobre o valor
em atraso. O risco de crédito realmente começa a aparecer após os 15 dias de
atraso, que é quando os esquecimentos e as flutuações nos fluxos de caixa dos
clientes começa a ser mais do que apenas isso – passam a se transformar em
incapacidade de pagamento. O devedor provavelmente já deixou de pagar outras
obrigações, como contas de consumo, mensalidades, pensão, etc., e esta é apenas
mais uma dívida que vai auxiliar o ‘efeito bola-de-neve’. Quando o atraso na
dívida atinge os 90 dias, as instituições credoras praticamente desistem de
receber os valores devidos, e começam a repassar as dívidas a outras
instituições, por uma fração do valor original.
Nesse momento, o que elas mais querem fazer é livrar seus balanços desse crédito ‘podre’,
reaver o máximo que conseguirem, partir para a próxima.
O
devedor tem seus dados incluídos nas ‘listas negras’ do SPC e SERASA, e passa a
ser negativado. Ainda assim, há
empresas que continuam a dar crédito para esses inadimplentes, a uma taxa
exorbitante!
Em
uma recente palestra do Programa de Apoio
ao Superendividado, promovida pelo PROCON/SP, coletei estes dados:
Tipo de Empréstimo
|
Taxa mensal
|
Consignado
|
2,5%
|
Financiamento
|
4,5%
|
Cheque Especial
|
9,0%
|
Cartão de Crédito
|
12,0%
|
Crédito para Negativado
|
18,5%
|
...ou
seja: quando você está se afogando em dívidas, no fundo do poço, aparece um
sujeito, que te oferece ajuda. Lá de cima, ele te joga um objeto. É uma corda,
para você sair do poço? Não... É uma pá – e em seu cabo está gravado ‘Crédito
para Negativado’.