quarta-feira, 13 de setembro de 2017

A inadimplência tem grande 'culpa' na resistência de queda na taxa de juros ao consumidor

Suponha um mundo sem riscos financeiros, onde os bancos sejam altruístas, e emprestassem dinheiro a seus clientes à mesma taxa que investiriam – neste caso a taxa referencial de juros dos títulos federais, divulgada pelo Banco Central, a Selic.
Dessa forma, um cliente poderia pegar dinheiro emprestado em Setembro de 2017, a uma taxa equivalente a 0,663% ao mês, ou 8,25% ao ano. Assim, uma pessoa poderia pegar R$1.000,00 no banco hoje, e quitar sua dívida no mês que vem por R$1.006,63, pagando R$6,63 de juros ao banco.
Entretanto...
...o mercado não é isento de riscos. No mercado de crédito, o risco mais comum é o de não-pagamento do empréstimo (ou de suas parcelas), chamado oficialmente de inadimplência, e informalmente, de calote. O banco precisa se proteger desse risco, pois senão irá perder dinheiro (lembre-se que até este momento ele não ganhou nada, está emprestando seu dinheiro ao seu cliente à mesma taxa que emprestaria ao governo federal, ao comprar um título público). O que ele poderia fazer para se proteger desse risco? Uma forma seria contratar um seguro – repassaria o risco de inadimplência a um terceiro, pagando um prêmio por isso, e receberia o valor segurado, caso o cliente não fizesse o pagamento do empréstimo (ou de uma de suas parcelas). Isso poderia ser complicado de realizar, pois precisaria encontrar alguém que quisesse assumir o risco, e pudesse dar garantia de pagamento – além de custar dinheiro, por que ninguém iria assumir esse risco de graça, o que nos leva a intuir que isso teria um custo, e que esse custo talvez não seja muito fácil de precificar.
Uma forma mais fácil (e discutivelmente, mais justa) seria repassar esse custo de volta aos clientes: se um cliente não pagar, os demais se comprometem a pagar (compulsoriamente) a dívida desse cliente. Como o efeito da inadimplência é estatístico (é uma parcela pequena dos clientes que deixarão de pagar seus empréstimos), ele sofre menor flutuação em amostras maiores, sendo mais estável e previsível.
Vamos entender como funciona a inadimplência?
Imagine que o banco empreste R$1.000 para 100 clientes, a uma taxa de 10% ao ano. Ao final desse ano, cada cliente deve devolver R$1.100 ao banco. Entretanto, um dos clientes não conseguiu pagar seu empréstimo, e o banco teria um prejuízo de R$1.100. Se os outros 99 clientes fossem compensar o banco pelo prejuízo, cada um deveria pagar R$11,11 a mais, fazendo com que a taxa de empréstimo passasse de 10% para 11,1% - e até aqui, o banco não teve lucro, só repassou o risco de inadimplência ao cliente!
Esta situação pode ocorrer de outra forma, com o mesmo efeito: 22 clientes só puderam pagar R$1.050 de volta ao banco, perfazendo o mesmo prejuízo anterior, e tendo o mesmo efeito na taxa efetiva de juros.
Ainda assim, este cálculo tem um problema de concepção: a inadimplência não é para sempre. Os clientes inadimplentes, eventualmente, terão condições de pagar seus empréstimos (ou ao menos uma parte deles), e não tiveram suas dívidas perdoadas, portanto fazer os demais pagarem imediatamente (e antecipadamente) por isso não é lá muito justo ...ainda mais por que os bancos, na vida real, têm lucro.

Eu resumi abaixo qual seria a taxa mínima que a instituição financeira teria de cobrar de seus clientes para não ter prejuízo com a inadimplência:
Taxa básica de juros
Inadimplência
5%
6%
7%
8%
9%
10%
11%
12%
1%
6,06%
7,07%
8,08%
9,09%
10,10%
11,11%
12,12%
13,13%
2%
7,14%
8,16%
9,18%
10,20%
11,22%
12,24%
13,27%
14,29%
3%
8,25%
9,28%
10,31%
11,34%
12,37%
13,40%
14,43%
15,46%
4%
9,38%
10,42%
11,46%
12,50%
13,54%
14,58%
15,63%
16,67%
5%
10,53%
11,58%
12,63%
13,68%
14,74%
15,79%
16,84%
17,89%
6%
11,70%
12,77%
13,83%
14,89%
15,96%
17,02%
18,09%
19,15%
7%
12,90%
13,98%
15,05%
16,13%
17,20%
18,28%
19,35%
20,43%
8%
14,13%
15,22%
16,30%
17,39%
18,48%
19,57%
20,65%
21,74%
9%
15,38%
16,48%
17,58%
18,68%
19,78%
20,88%
21,98%
23,08%
10%
16,67%
17,78%
18,89%
20,00%
21,11%
22,22%
23,33%
24,44%
Figura 1: Taxa que a instituição financeira teria que cobrar, sem lucro, para compensar a inadimplência no empréstimo

Uma característica perversa fica evidente, ao analisar o aumento percentual na taxa básica de juros, para cada percentual de inadimplência: quanto menor a taxa básica de juros, maior a influência da inadimplência na taxa do empréstimo, como mostra a tabela abaixo.
Taxa básica de juros
Inadimplência
5%
6%
7%
8%
9%
10%
11%
12%
1%
21,21%
17,85%
15,44%
13,64%
12,23%
11,11%
10,19%
9,43%
2%
42,86%
36,05%
31,20%
27,55%
24,72%
22,45%
20,59%
19,05%
3%
64,95%
54,64%
47,28%
41,75%
37,46%
34,02%
31,21%
28,87%
4%
87,50%
73,61%
63,69%
56,25%
50,46%
45,83%
42,05%
38,89%
5%
110,53%
92,98%
80,45%
71,05%
63,74%
57,89%
53,11%
49,12%
6%
134,04%
112,77%
97,57%
86,17%
77,30%
70,21%
64,41%
59,57%
7%
158,06%
132,97%
115,05%
101,61%
91,16%
82,80%
75,95%
70,25%
8%
182,61%
153,62%
132,92%
117,39%
105,31%
95,65%
87,75%
81,16%
9%
207,69%
174,73%
151,18%
133,52%
119,78%
108,79%
99,80%
92,31%
10%
233,33%
196,30%
169,84%
150,00%
134,57%
122,22%
112,12%
103,70%
Figura 2: Aumento percentual na taxa de juros do empréstimo, para compensar a inadimplência

...e já que uma imagem vale por mil palavras, vamos ilustrar essa tabela com um gráfico:
Figura 3: Aumento percentual na taxa de juros do empréstimo, para compensar a inadimplência 

Muito bem, já deu para perceber que a inadimplência é uma grande vilã no aumento das taxas de juros para o consumidor ...mas qual a dimensão dessa inadimplência? Segundo esta notícia  da Exame, a inadimplência do Banco do Brasil está acima de 6% no curto prazo (acima de 15 dias, mas abaixo de 90 dias, com maior chance de serem recuperados), e 4% no longo prazo (atrasos superiores a 90 dias, com baixa chance de serem recuperados) – as provisões para devedores duvidosos (PDD) do Banco do Brasil totalizaram R$ 27,5 bilhões. Os outros grandes bancos tem números semelhantes.
Dessa forma, novamente considerando que o banco fosse bonzinho, e não tivesse lucro algum com esse tipo de operação, procuraríamos dentre os valores apresentados na tabela da Figura 1, e com um pouco de interpolação, encontraríamos um valor próximo de 15% a.a., para a atual taxa Selic de 8,25% a.a. – um aumento superior a 80% em relação à taxa livre de risco. Se fôssemos considerar o lucro que o banco colocaria para realizar essa operação, esta taxa ultrapassaria 50% ao ano, sem dúvidas – e aqui estamos considerando devedores minimamente qualificados. Abordaremos mais sobre isso, a seguir.
Quando uma instituição financeira vai conceder crédito a um cliente, já sabendo que há o risco de não receber o valor de volta, ela deve se certificar que ele tem condições de pagar as parcelas nas datas estabelecidas. Em geral, ela irá pedir algum tipo de garantia, que mostrará a capacidade de pagamento do cliente. Pode ser um bem (casa, carro, etc), uma consignação de rendimentos (desconto em folha de pagamento), ou um fiador (que por sua vez terá de dar uma garantia própria). Quanto maior o valor da garantia, em relação ao valor financiado, menor o risco – pode dar trabalho e demorar (e custar bastante, em termos de gastos legais), mas o valor emprestado poderá ser recuperado.
Outro aspecto da inadimplência se refere ao prazo de atraso: atrasos curtos (menos de 15 dias) são comuns (muitas vezes são causados por distração no controle de datas de pagamento e de fluxo de caixa do cliente), e podem causar problemas de gestão para a instituição credora, mas geralmente não apresentam um risco significativo, e seu custo é coberto pela aplicação de uma multa sobre o valor em atraso. O risco de crédito realmente começa a aparecer após os 15 dias de atraso, que é quando os esquecimentos e as flutuações nos fluxos de caixa dos clientes começa a ser mais do que apenas isso – passam a se transformar em incapacidade de pagamento. O devedor provavelmente já deixou de pagar outras obrigações, como contas de consumo, mensalidades, pensão, etc., e esta é apenas mais uma dívida que vai auxiliar o ‘efeito bola-de-neve’. Quando o atraso na dívida atinge os 90 dias, as instituições credoras praticamente desistem de receber os valores devidos, e começam a repassar as dívidas a outras instituições, por uma fração do valor original. 
Nesse momento, o que elas mais querem fazer é livrar seus balanços desse crédito ‘podre’, reaver o máximo que conseguirem, partir para a próxima.
O devedor tem seus dados incluídos nas ‘listas negras’ do SPC e SERASA, e passa a ser negativado. Ainda assim, há empresas que continuam a dar crédito para esses inadimplentes, a uma taxa exorbitante!
Em uma recente palestra do Programa de Apoio ao Superendividado, promovida pelo PROCON/SP, coletei estes dados:
Tipo de Empréstimo
Taxa mensal
Consignado
2,5%
Financiamento
4,5%
Cheque Especial
9,0%
Cartão de Crédito
12,0%
Crédito para Negativado
18,5%


...ou seja: quando você está se afogando em dívidas, no fundo do poço, aparece um sujeito, que te oferece ajuda. Lá de cima, ele te joga um objeto. É uma corda, para você sair do poço? Não... É uma pá – e em seu cabo está gravado ‘Crédito para Negativado’.